Rir para não morrer https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br Saúde mental com humor Mon, 28 Jan 2019 19:10:39 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Velhas e santas humilhações https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/2019/01/28/velhas-e-santas-humilhacoes/ https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/2019/01/28/velhas-e-santas-humilhacoes/#respond Mon, 28 Jan 2019 17:43:36 +0000 http://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/files/2019/01/nelson-rodrigues-150x150.jpg https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/?p=260 Há uma expressão de Nelson Rodrigues que pode não ser famosa como suas grandes frases, mas não me sai da memória jamais.

Não me lembro se a vi sendo repetida por um dos ingênuos que tenta imitar o estilo rodrigueano em seus textos; e, olha, nós jornalistas não temos dinheiro mas temos centenas de colegas que se prestam a esse papelão.

Eu mesmo fui um deles, numa época em que lia os volumes de crônicas do Nelson até debaixo do chuveiro. Saía uma coluna assinada por mim numa revista da editora Abril e eu fazia o meu melhor para soar como o autor de máximas como “Dinheiro compra até amor verdadeiro”, “Toda unanimidade é burra”, “O brasileiro é um feriado” e “Até os canalhas envelhecem”. (Peço que não procurem a tal coluna – tenho certeza de que os textos são piores que infiltração em teto de apartamento).

Pois bem, a tal expressão rodrigueana que nunca sai da minha cabeça não vale mais o suspense, até porque está no título deste texto. “Velhas e santas humilhações”.

Nelson saca essa expressão quando fala de traumas antigos vividos por algum dos heróis reais ou inventados de suas crônicas e contos. O tema geralmente é sério, mas a expressão tem cheiro de falsa comiseração e da pomposidade de um poeta jesuíta do século 17. Na mão de Nelson, o trauma que afoga o sujeito em angústia acaba virando motivo de gargalhadas.

(Um dos maiores defeitos que enxergo nas adaptações de suas peças é o de tratar as tragédias com seriedade. Ele fazia questão de escrever personagens pensando em escalar os maiores canastrões do mercado como seu cunhado Jece Valadão. Se alguém conta que tem câncer, sempre há o contraponto da interlocutora ser a vizinha que escuta enquanto coça a axila com um grampo de cabelo.)

Voltando às humilhações: o melhor exemplo de seu emprego (melhor porque é o único que me lembro de cabeça) é quando Nelson conta a história pessoal de um terno de segunda ou terceira mão que usava para trabalhar no início da carreira. Era a única roupa de trabalho que possuía; sua pobreza era tão grande que uma lavanderia era tão acessível quanto o chá das cinco no palácio de Buckingham. O conjunto era usado todos os dias no calor vil do Rio de Janeiro e você pode imaginar que tipo de aroma anunciava a chegada do rapaz à redação onde trabalhava.

Passado algum tempo, seu irmão mais velho (que trabalhava no mesmo jornal) o chama de lado e diz que ele virara assunto nas rodas. Que o fedor havia tornado o ambiente de trabalho insalubre para os demais. Nelson, desesperado, professa ao irmão que toma banho e passa perfume todos os dias: “Não sou eu! É o terno! É o terno!”

Aí está uma velha e sagrada humilhação que o perseguiu até o fim dos dias; nas ciências que estudam a mente, chama-se de “trauma”. Nelson cita a crise do terno em diversas crônicas – parece que recorda-se dela em busca de inspiração quando quer praticar seu humor autodepreciativo de gênio.

Tudo é trauma. Traumas psicológicos são o que movem o mundo – vingança contra traumas antigos é uma das narrativas preferidas do Ocidente. Estamos sempre protegendo nossas velhas e santas humilhações como relíquias, sem fazer outro uso delas que não alimentar nossos piores instintos.

Pois fico pensando cada vez mais nos artistas que transformam suas feridas psicológicas em coisas bonitas e também coisas engraçadas, como fez o sofrido, mil vezes sofrido Nelson Rodrigues (leiam O Anjo Pornográfico, a biografia definitiva escrita por Ruy Castro para saberem o que é ter tragédias na vida). Até na crônica em que anunciava que sua filha havia nascido cega há uma mistura indefinível de angústia e comicidade. É aquela espécie de dor forte que faz você rir num espasmo.

Ainda não encontrei a coragem para fazer das minhas humilhações pessoais obras de humor e graça, mas a intenção é forte. O sonho é que, um dia, irmãs e irmãos de infortúnios possam encontrar no que escrevo um pouco de reconhecimento e, quem sabe, alívio.

Por isso, fico por aqui. Leiam as crônicas de Nelson Rodrigues. (Frase ideal para terminar qualquer texto, aliás).

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João de Deus e a compulsão suicida em entregar nossa espiritualidade a charlatães https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/2018/12/19/joao-de-deus-e-a-compulsao-suicida-de-entregar-nossa-espiritualidade-a-charlataes/ https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/2018/12/19/joao-de-deus-e-a-compulsao-suicida-de-entregar-nossa-espiritualidade-a-charlataes/#respond Wed, 19 Dec 2018 18:46:00 +0000 http://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/files/2018/12/Screen-Shot-2018-12-19-at-16.42.08-150x150.jpg https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/?p=246 A ciência diz que o ser humano desenvolveu a linguagem para que avisássemos uns aos outros sobre perigos, isso lá nas planícies africanas há 200 mil anos. Leões, cobras, escorpiões, tribos rivais, só barra pesada. O “eu te amo” e o “nossa, como você emagreceu” só viriam muito depois.

As boas notícias como uma árvore carregada de frutas, um filete de água limpa ou um parceiro do sexo oposto eram raras e bem menos urgentes perto da quantidade de predadores que cercavam os homo sapiens.

Talvez por isso nossa linguagem tenha poucos nomes para coisas boas e muitos para coisas ruins. Deus, por exemplo. Só consigo lembrar de “Todo-Poderoso” (que posso estar escrevendo errado, já que desconheço se tem hífen e onde há maiúsculas; se errei, peço perdão, bom Deus).

Bom, já seu desafeto tem centenas de nomes, um mais criativo que o outro: tinhoso, ardiloso, satanás, capeta, belzebu, escacha-pedras, capiroto, beiçudo, lá-de-baixo, coisa-ruim, mofento, pé-de-cabra, chifrudo, rabão, demo, demonho.

Disse tudo isso porque quero comentar o caso do fazendeiro João Teixeira, que durante décadas desempenhou o papel de curandeiro no interior do estado de Goiás e também pelo mundo.

O que me espanta é como a necessidade do ser humano de encontrar uma saída fácil e instantânea para seus problemas supere o instinto de sobrevivência programado na base do nosso DNA. A linguagem apareceu para que pudéssemos evitar e colaborar para derrotar predadores.

Mas ela não é sufiente para derrotar nossa queda por figuras carismáticas que prometem o que a realidade nos provou não ser possível. Eles não apenas ganham a queda de braço com a ciência como arrebanham tantos quantos caibam em seus currais.

Há muito o que não sabemos sobre curas alternativas, sobre o poder da mente humana. Pessoalmente, acredito em milagres. Por exemplo: Não há outra maneira de explicar como o Brasil ainda existe com o brasileiro votando do jeito que vota.

Mas a espiritualidade é uma obrigação individual.

Terceirizando a responsabilidade sagrada, pessoal e intransferível de descobrir o que é a vida, para que ela serve, por que ficamos doentes, o que significa a morte, para que serve o sofrimento, colocando essas respostas na mão de um ser humano dotado de poder e influência – estamos reunindo os ingredientes para sucessivos desastres.

Fatalmente, um desses  curandeiros, gurus descolados, padres e pastores populares será um psicopata que destrói centenas de vidas sem trocar a expressão do rosto. Chega de mitos.

(Um parêntese. Demorei muito a escrever isso aqui. Minha vontade mesmo era gritar um som feio e grosso, que se transformasse em choro convulsivo quase imperceptivelmente. É esse o tamanho da dor que sinto pelo desastre que João Teixeira causou na vida de mais de 300 mulheres.)

Não bastaram os milhares de padres católicos que molestaram crianças pelo mundo, pastores estupradores todos os dias no noticiário brasileiro, os gurus do andar de cima do estrato social que incluem estupro em seus receituários espirituais….

Temos muitas, muitas palavras para o capeta, aquele que escraviza almas e as tortura para a eternidade. Um deles, no Brasil, anotem aí dicionaristas, será “João”. Sobrenome: “de Deus”.

A espiritualidade – que para mim é a habilidade de encontrar dentro de si as ferramentas para viver em paz e harmonia; outras pessoas chamam isso de Deus – pode ser explorada entre pares. Pares iguais, irmãos, colaboradores.

Vamos falar sobre nossa dor, vamos pedir milagres, mas vamos nos abrir entre pares, não a ilusionistas que usam miúdos de galinha para fingir tirar um tumor de barrigas e que destroem vidas de mulheres em salas fechadas.

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Sugestões e críticas: marcelinho@gmail.com

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Sua depressão te ama https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/2018/12/06/sua-depressao-te-ama/ https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/2018/12/06/sua-depressao-te-ama/#respond Thu, 06 Dec 2018 18:12:22 +0000 http://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/files/2018/12/hands-heart-love-582048-150x150.jpg https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/?p=237 Como todo bom deprimido, muitas vezes eu me sinto desconfortável perto de pessoas. Infelizmente, quase a totalidade da humanidade é feita de pessoas.

Nos momentos mais difíceis, sempre tive mais dificuldade em estar no mesmo lugar que uma pessoa em especial: a mesma pessoa que digita essas palavras (sou eu mesmo que estou digitando, não tenho dinheiro para secretária ou taquígrafo).

Aí é que está. Você se odeia porque não está falando a mesma língua que você mesmo, parece um daqueles diálogos neuróticos do Woody Allen. Tem uma coisa dentro de você que te ama mais do que você poderia imaginar. Ela quer preservar sua integridade física e psicológica, e também que você seja uma pessoa melhor, que se exercita, come melhor, deixa de pedir para as pessoas te seguirem de volta no Instagram…

O que ela mais quer que você faça é ter ligações de qualidade com a família, amigos, colegas de trabalho, desconhecidos, bolsonaristas… Quando você deixa de tentar fazer o trabalho para tê-las, e se perde com substitutos como o consumismo, drogas lícitas e ilícitas, comportamentos arriscados, compulsão por dinheiro e carreira, essa parte de você que você desconhece chega para por ordem na casa.

Pelo menos é assim que funciona para mim. Eu intuía essas coisas, mas a descoberta do trabalho do psicoterapeuta canadense Gabor Maté foi um daqueles momentos em que você se senta no meio fio e começa a chorar de alegria e de “por que não fiquei sabendo disso antes?”

Bom, não dava para saber muito antes porque é muito nova essa linha da psicologia que une os avanços dos estudos neurológicos, teorias sobre o efeito dos traumas no equilíbrio dos neurotransmissores e o efeito do ambiente na ativação de caminhos neurais.

A depressão talvez não seja nem uma doença, mas um sintoma de traumas cuja existência a psiquê não suporta. Quando você esconde muito lixo dentro de um armário, um dia a porta arrebenta. Há uma hipótese de que a depressão seja uma forma do organismo se fechar para melhor cuidar de ataques internos como viroses ou gripes. A depressão quer o seu melhor.

Em um certo nível, até a intenção de se suicidar é seu cérebro querendo o melhor para você: diante da dor desconhecida que parece não ter solução, acabar com tudo parece ser única opção. Esses mecanismos de autoproteção querem o seu bem, mas ninguém disse que eles são inteligentes. Eles são tão inteligentes como um cachorro ou um camaleão. Literalmente.

A depressão e a ansiedade, de acordo com as hipóteses mais novas, estão ligadas a partes do nosso cérebro que dividimos com mamíferos e répteis. O cérebro reptiliano, mais antigo, controla nosso instinto de lutar ou correr. Como não tem a complexidade do lobo frontal, não tem noção de tempo e carrega traumas antigos para sempre, ou pelo menos até você começar a fazer algum trabalho para apaziguar essas emoções primitivas. O cérebro mamífero é um pouco mais avançado e é responsável por nossa fissura por formar grupos, buscar proteção nos outros, querer influenciar, buscar afeto, proteger o que é nosso. Tudo isso a grosso modo, gente. O quadro todo é mais complexo e fascinante do que um amador meio deprimido poderia explicar numa quinta-feira um pouco melancólica.

O caminho para ouvir essas estruturas que têm a chave da farmácia interna que libera as substâncias que nos fazem sentir bem ou um lixo é um mistério pessoal e intransferível. Mas sempre há ajuda.

Você está deprimido porque algo dentro de você está certo, é precioso e entende melhor um ambiente disfuncional do que as outras pessoas. Algo que tem mais sensibilidade para captar injustiças (com você e com os outros) e quer que você realize seu potencial.

O problema é o caminho para se livrar do lixo. Vai tirando um pouquinho de cada vez. O importante é fazer alguma coisa todo dia. Dê um abraço em alguém, sinta a beleza desse ato natural e digno.

Também não deixe de se informar. Comece vendo esta palestra de Gabor Maté traduzida para o português. Há também este TED Talk de 2012 com legendas em nossa língua.

Como toda coisa teoricamente simples (levar um ser humano a Marte, viver em paz dentro de casa), ouvir o que sua depressão tem a dizer e conseguir colocar isso em prática também exige planejamento, paciência, coragem e persistência.

E um pouquinho de senso de humor, né, seu imprestável!

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Sejamos tristes! https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/2018/11/21/sejamos-tristes/ https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/2018/11/21/sejamos-tristes/#respond Wed, 21 Nov 2018 17:30:16 +0000 http://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/files/2018/11/adult-art-conceptual-278312-150x150.jpg https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/?p=230 Não sei como chegamos à conclusão de que o objetivo da vida é a felicidade.

Deve ter sido algum filme que passou na Sessão da Tarde quando éramos crianças.

Após alguns meses de textos sobre depressão, ansiedade, suicídio, insegurança, masculinidade tóxica e uma dolorosa incursão na psicologia da campanha política de 2018, tenho achado cada vez mais difícil achar definição que preste para a palavra felicidade.

Digo isso porque quanto mais estudo psicologia, filosofia, religiões orientais, literatura médica, etc, mais chego perto da conclusão de que a busca implacável por esse estado exaltado que chamamos felicidade é uma usina de miséria e decepção.

A tristeza é familiar, calma, plácida, cheia de dignidade. Tenho a sensação de que o que convencionou-se chamar de tristeza na verdade é o estado natural do ser humano. Somos tão pessimistas que chamamos a marcha do carro que não faz nada de “ponto morto”. Podia ser “ponto OK”, “ponto tranquilo”, “ponto beleza”.

Pensei em exaltar a tristeza depois de me sentir paralisado na hora de achar assunto.

Não que eu tenha a ilusão de que já falei tudo o que poderia ser dito sobre saúde mental até agora. Meus queridos desajustes emocionais não me levaram tão longe no caminho da megalomania. Pelo menos não por enquanto.

É que, no meio dessa dúvida, uma ideia me ocorreu. Não é a melhor ideia que já tive, e com certeza não é a pior. (Qualquer amigo que conviveu comigo nos meus 20 e poucos anos pode atestar que minhas piores ideias foram concebidas durante a madrugada na rua Augusta).

O que eu quis dizer é que às vezes empaco ao escrever porque sinto o peso do mundo de dor e confusão que traz o leitor até aqui. Recebo centenas de e-mails com histórias mais ou menos parecidas. Todo mundo fala em querer ser “feliz” e do peso que é atrapalhar a “felicidade” dos outros.

Por fim, a expectativa que acabo impondo sobre meu próprio trabalho acaba sendo parecida com a que família e amigos põem sobre o pobre do leitor.

Vi aí uma analogia entre a busca da felicidade e o perfeccionismo.

Perfeccionismo, algo que foi glamourizado pela arte e pela imprensa como marca do criador, não passa de um sintoma clássico de estados emocionais fragilizados.

Não existe nada perfeito, pelo menos não que um ser humano consiga fazer: o perfeccionismo é só mecanismo de defesa de um ego inseguro, uma estratégia ineficaz para ter controle sobre a ansiedade.

Querer felicidade o tempo, extirpar a tristeza da própria experiência: não é isso a forma suprema do perfeccionismo? Esconder o feio e mostrar o bonito é o trem bala sem escalas para a estação da loucura (ou coisas piores).

A tristeza talvez seja um estado de espírito agradável se você considerar que nossa ideia de felicidade está ligada à satisfação de desejos sensoriais ou a fantasias de poder absoluto do ego.

Moral da história: não escrevi um texto perfeito, saiu um troço meio triste do ponto de vista da graça e do apreço estilístico; mas, se você chegou até aqui, é porque funcionou.

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Críticas e sugestões: marcelinho@gmail.com

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Até mais, mundo cruel https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/2018/11/06/ate-mais-mundo-cruel/ https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/2018/11/06/ate-mais-mundo-cruel/#respond Tue, 06 Nov 2018 11:38:04 +0000 http://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/files/2018/11/Screen-Shot-2018-11-06-at-09.37.11-150x150.jpg https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/?p=220 Olá, Brasil de novembro de 2018. Não quero mais saber o que acontece com você. Vou ficar no meu cantinho lendo meus livros. Não adianta mandar notificações no meu celular. Quero um tempo. Não sou eu, é você.

Parei, mesmo. Eu não sei quem é o ministro da Justiça de Jair Bolsonaro. Aproveitei o fim da eleição para fazer uma dieta de notícias, uma vez que desde o impeachment deitei e rolei no minuto a minuto dessa insanidade grossa, espessa que fabricamos.

Se soubesse quem é o ministro, talvez acabasse irritado – vai que o magistrado escolhido seja, sei lá, um juiz que prendeu o maior opositor de Bolsonaro, que vazou grampo ilegal de uma presidente, que liberou a dias da eleição uma delação que prejudicava o adversário de Bolsonaro. Sei que minha imaginação é fértil e que uma indicação dessas seria um absurdo internacional, algo inconcebível. Mas reza o bom senso que no Brasil tudo pode acontecer. Vai que.

Acho que o ciclo de polêmicas que funciona 24 horas (não estou falando de jornalismo de verdade, mas da pauta apocalíptica das redes) é uma droga como qualquer outra. Fazer o uso recreativo é difícil quando tal droga é o potente coquetel de insanidades, agressões e mentiras oferecido pela “nova política” eleita em outubro. Um teco e você já está acorrentado ao hábito, do jeitinho que o traficante quer. Não consegue trabalhar direito, briga com a família, passa o dia na Cracolândia das redes sociais consumindo chamadas caça-clique.

Quem fabrica esse entorpecente sabe exatamente o que está fazendo. No meio da confusão, você está distraído com, sei lá, uma prancha de bodyboard e se esquece do veto a veículos de comunicação numa coletiva de imprensa. (Novamente, esse é um exemplo surrealista que me ocorreu. Duvido que algo assim possa acontecer.) Criar distrações é tática de trombadinha. Já me despedi de dois celulares em shows dessa mesma forma: um meliante esbarrava em mim para criar uma distração enquanto outro esvaziava meu bolso.

Você pode achar graça na forma como expliquei minha intenção de fazer uma reabilitação na forma como consumo notícias nas redes sociais, mas há ciência por trás disso. A indústria da polêmica não é um comportamento espontâneo do ser humano, mas algo que foi projetado pelos engenheiros e psicólogos do Vale do Silício. Tristan Harris, ex-designer de produtos do Google, dedica todo seu tempo a denunciar a má fé de seus ex-colegas. Segundo ele, o objetivo sempre foi acessar áreas primitivas de nossa mente usando gatilhos para liberar neurotransmissores ligados ao mesmo sistema de recompensa das drogas mais pesadas. Quando seu coração para de bater por alguns momentos enquanto a timeline do Twitter carrega, não é porque sua conexão está lenta. O atraso de segundos, segundo ele, segue o princípio das máquinas de caça-níqueis. Está ali porque alguém o programou.

A discussão é urgente e está sendo travada nos Estados Unidos há algum tempo. Além dos efeitos na saúde mental, é consenso que as redes sociais não fizeram bem algum ao jornalismo. Milhares de jovens colegas capazes de grandes reportagens acabaram na batalha inglória no front das manchetes polêmicas baseadas na polêmica do dia. Quando os novos ocupantes de Brasília são orgulhosos produtores desse lixo, é sinal de que precisaremos quebrar o hábito.

Vou voltar a consumir notícia diariamente quando sentir que a mente menos propensa em morder a isca da controvérsia superficial. Por enquanto, sou aquele sujeito que chega na churrascaria apavorado de fome, se entope de pão de alho e linguiça enquanto a picanha fica escondida.

A coisa passa a valer de verdade só em primeiro de janeiro. Até lá, aproveito a retórica de nosso novo establishment e termino com o Velho Testamento. Eclesiastes 1º, versículo 18: “Afinal, quanto maior o saber, maior o sofrimento; e quanto maior o entendimento maior o desgosto”.

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Críticas e sugestões: marcelinho@gmail.com

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Os pontos positivos da vitória de Bolsonaro https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/2018/10/25/os-pontos-positivos-da-vitoria-de-bolsonaro/ https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/2018/10/25/os-pontos-positivos-da-vitoria-de-bolsonaro/#respond Thu, 25 Oct 2018 18:15:39 +0000 http://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/files/2018/10/15399138715bc9388f07b24_1539913871_3x2_lg-150x150.jpg https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/?p=210 “Eu estou muito cansado” e “o Brasil está doente”. Teve um cavalheiro que disse essas duas frases em um metrô de Paris outro dia, mas o episódio não passou de um caso flagrante de plágio. O verdadeiro autor das frases sou eu. Isso já era dito por mim muito antes de virar modinha.

Estou como está todo mundo nesta reta final de eleição. O candidato que surfou a onda de ansiedade e medo que ele e os donos deste país ajudaram a criar quadruplicou a aposta no autoritarismo e parece que teremos sorte se sobrarem uns pedacinhos da Constituição depois que ele a rasgar, relíquias que traremos com carinho, símbolos de um tempo místico em que os brasileiros não sonhavam em se matar uns aos outros.

Não sei quem disse, mas tem uma frase que me incomoda há bastante tempo: “Não é possível rir e sentir medo ao mesmo tempo”. Incomoda porque não sei se é verdade: nunca me lembro de verificar na hora se todo medo desaparece durante uma boa gargalhada. Mas não custa tentar e rir agora com os dentes que ainda não foram quebrados pela repressão.

Não custa também lembrar um exemplo: diz a História que São Lourenço foi morto por uma piada. Quando o imperador Décio pediu que o santo lhe trouxesse o “tesouro da Igreja”, Lourenço não titubeou: saiu pela cidade catando os doentes e pobres que encontrava. “Aqui está o tesouro da Igreja”, disse. Décio não gostou da pegadinha e ordenou que São Lourenço fosse morto numa grelha. Reza a lenda que o mártir, antes de sucumbir, disse algo como “acho que este lado já está bom, podem me virar”. (A história está no manual de redação humorística do gênio Ricardo Araújo Pereira).

Inspirado por São Lourenço, gostaria de fazer aqui um exercício de rir na cara do perigo. Será que veremos alguma coisa de boa no governo de Bolsonaro e no clima que vai se instalar? Acho que sim.

Vamos começar com os mais jovens:

A garota ou o garoto insatisfeito com os vencimentos em seu primeiro emprego pode seguir o exemplo produzido por nosso mandatário em 1986 quando ameaçou colocar bombas em quartéis porque “o salário está baixo”. O pessoal fica se dando o trabalho de organizar sindicato, ir para a rua, cobrar direitos… Tudo errado. Se com um punhado de dinamite você chantageia o Estado Maior do Exército, não vai conseguir um aumentinho no telemarketing em que trabalha? Se todas as categorias aderirem à estratégia do jovem ativista Bolsonaro, a venda de explosivos pode aquecer a indústria nacional e ajudar no PIB.

Sobre a proposta do capitão de militarizar o ensino, pense na vantagem competitiva que nossos jovens terão sobre os estrangeiros nesses joguinhos online de tiro. Isso faz um bem tremendo para a autoestima do jovem. E quanto à formação intelectual dos alunos, o próprio Bolsonaro mostrou como ela é eficiente ao prestar apoio na Câmara aos 84 alunos (de 158) do Colégio Militar de Porto Alegre que em 1995 citaram Adolf Hitler como figura histórica que mais admiravam. Se isso não é sinal da eficiência das Forças Armadas em formar cidadãos ao seu gosto, não sei o que poderia ser.

Sobre o risco às instituições: se aquele filho do Bolsonaro que é calvo (não consigo guardar o nome de nenhum deles) mandar um cabo e um soldado para passar a tranca no STF, há também um lado positivo. Vamos abrir espaço em nossas cabeça para lembrar o nome de 11 pessoas.

Eu me lembro que durante a Copa alguém estava maravilhado com o fato de que mais brasileiros sabiam recitar a escalação do STF do que a do time do Felipão (era Felipão? Ou Zagallo? Já se passaram tantos anos desde julho de 2018 que não me lembro). Podendo esquecer quem é Gilmar Mendes e Cármen Lúcia, você terá lugar para a escalação do seu time favorito, para aquelas pobres pessoas que sempre te chamam pelo nome mas você não sabe quem são etc.

Por outro lado, o candidato erra feio ao falar em colocar mais dez ministros amigos no Supremo para desequilibrar as decisões em seu favor. O brasileiro não é bobo e já sabe como são exóticos os nomes dos magistrados que avançam na carreira. A nação não suportaria ter que decorar mais dez nomes desses. Aí não tem lado positivo.

Teve também aquela proposta de esterilizar pobres para evitar “o caos”. Veja bem. O cidadão que está satisfeito com o tamanho de prole e não consegue vasectomia pelo SUS só precisa dizer que passa fome (se passar de verdade, fica mais convincente) e Bolsonaro “fecha a fábrica” para ele. Não se pode dizer que é um governo sem função social.

Dando sequência: a ciência e o capitão da reserva costumam não se dar muito bem. Ele já disse que o aquecimento global é balela e liderou projeto para liberar a tal “pílula do câncer”; o general que ele quer meter na Educação insinuou que não se pode ensinar a evolução das espécies de Darwin sem ensinar também o Criacionismo. É.

Vejamos o lado bom: nessa toada, com 3/5 do Congresso ele consegue revogar já  a Lei da Gravidade. Imagina a fila de turistas que viriam para o Brasil curtir a gravidade zero sem ter que pagar milhões de dólares numa viagem de foguete? Sem contar que vai todo mundo perder 100% do peso de uma hora para outra. Só consigo ver vantagens em revogar essas leis dessa ciência tendenciosa que diz que eu passei dos 100 quilos.

Bolsonaro também disse que vai banir do país ou prender opositores “bandidos”. Veja só: quem nunca sonhou com um mochilão na Europa, na América Latina, não é mesmo? Parece que quem é expulso pelo regime vai para lugares bacanas, aprende francês, espanhol, faz música, na volta tem várias pessoas esperando no aeroporto entre choro e abraços.

Acho que está de bom tamanho, não? Se você acha que a História vai provar que fui otimista demais neste artigo: quanta presunção sua. Segundo a ONU, a humanidade tem 12 anos para diminuir as emissões de carbono antes que os estragos sejam irreversíveis. Quem disse que vai ter futuro?

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Sugestões ou reclamações? Meu e-mail é marcelinho@gmail.com

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A censura prévia que já está valendo https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/2018/10/17/a-censura-previa-que-ja-esta-valendo/ https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/2018/10/17/a-censura-previa-que-ja-esta-valendo/#respond Wed, 17 Oct 2018 15:00:56 +0000 http://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/files/2018/10/black-and-white-black-and-white-depressed-568025-150x150.jpg https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/?p=200 Não sei como chegamos até aqui nem pela mão de quem descemos a este círculo do inferno, mas a verdade é que o brasileiro já vive um regime de censura prévia.

Tenho tentado, com um entusiasmo meia-bomba, mas vá lá, conversar com pessoas que professam ódio à esquerda, campo ideológico com o qual me identifico. Amigos, parentes, colegas. Confesso que algumas vezes minha paciência se esgotou mais rápido que as baterias desses smartphones mais novos. Mas não houve uma vez em que o resultado tenha sido um aperto de mão. No melhor desfecho, ouvi algo como “mas você, um rapaz tão honesto, metido nessas coisas…”. Na pior, fui xingado por um tio no grupo de família do Whatsapp, um trauma ainda longe de superado.

Tudo bem. O ansiolítico para esses conflitos, seja para mim ou para quem se abalou do outro lado, é voltar para a bolha das redes sociais. Aquele lugar quentinho em que você conta como está cercado de pessoas toscas e recebe uma injeção de dopamina na forma de likes e comentários afinados com o seu pensamento. O problema é que ali também não há debate, não há diálogo de ideias opostas, não há dissonância. Não vai resolver nada.

Desistimos de conversar com o outro. Na minha opinião, quem desiste de falar porque o ambiente não é amigável é vítima de uma censura prévia. Autoimposta, mas censura.

Na semana passada, escrevi sobre como a crise política e econômica tem gerado efeitos perversos na saúde mental das pessoas. Entrevistei seis psicólogos e psiquiatras que contaram como seus consultórios estão cheios de pessoas em crise por causa da eleição. De horas de entrevista, a frase que falou mais alto para mim foi a do professor Benilton Bezerra Jr., do Instituto de Medicina Social da UERJ: “O Brasil tem uma tradição cultural de aversão ao conflito explícito. Tudo é levado para o pessoal. Não somos educados para admitir e cultivar o conflito, o contraditório, a discussão. Nenhum amigo, em público, discorda de um amigo.”

Eu não aprendi a debater, fui criado na sombra da máxima “política, futebol e religião não se discute”. Talvez por isso sejamos essa massa sem ideologia, que sempre vota em convulsões para um lado e para outro, ora se vingando de A ao eleger B, para logo depois trair o canalha do B com o A.

Na minha experiência, política sempre foi assunto proscrito, reduzido a narrativas frouxas, um rendado de fragmentos de fatos e nenhum contexto. Se você ainda não desistiu de mim, deve estar se perguntando o que isso tem a ver com saúde mental. Acredito que tudo. Dezenas de pessoas me escreveram após a coluna anterior expondo crises de ansiedade, agravamento de depressões durante este processo eleitoral. Muitos dos relatos expressavam a falta de condições para conversar com aqueles que professavam voto no candidato oposto como um enorme incômodo, uma sensação de falta de voz, de isolamento social.

Fomos feitos para conversar. Desde o primeiro balbucio que alertava o companheiro para a cobra que preparava o bote na caverna até o “como foi o seu dia?” na hora do jantar, precisamos de comunicação de qualidade para ter saúde mental. Sem comunicação não há laços afetivos, sem se relacionar intelectualmente num ambiente estável e de respeito à lógica somos alguma forma de vida inferior até aos organismos monocelulares que avisam ao outro quando estão a fim de procriar.

Acompanho a escalada da loucura de muito perto desde o final do ciclo eleitoral de 2014. Como um dos autores do Sensacionalista, vi a cobra nascer e engordar. Se não gostavam de uma piada que defendia os direitos humanos, faziam lá um arrazoado pedindo o fim do site porque, pasmem, policiais também morrem. Acho que fomos uns dos primeiros humoristas de destaque a serem chamados de comprados pelo PT diariamente; sendo que, com a mesma periodicidade, batemos em Dilma, em Lula, e em o que de ruim o partido fez.

Quem dá a cara para bater se acostuma, cria calo, bloqueia, segue falando o que acredita. Mas a conversa pessoal, cara a cara, seguiu o mesmo caminho. Eu não acreditava que fosse possível. Em algum momento, a vida real se tornou a infame caixa de comentários do G1.

Não vou falar mais de fake news, porque você deve querer menos ler sobre isso do que eu quero digitar novamente essa maldita expressão. Quem gosta de boataria e mentira tem que se ver com a Justiça. Meu ponto é que, coincidência ou não, o fenômeno cresceu com o enfraquecimento do diálogo pacífico. Nesse espaço cresceu a intolerância de figuras que não deveriam ser eleitas nem para administrar uma prateleira de armário. Quem quer isso? O que fazer agora?

Conversei com o professor de o professor de Psicanálise da USP Christian Dunker, que faz um trabalho formidável para popularizá-la e esclarecer dúvidas sobre saúde mental em um canal de YouTube (ele já tem 97 mil inscritos). Dunker sugere a quem deseja reabrir o diálogo com pessoas extremadas uma abordagem que ele chama de “clínica”. Quem está escutando deve primeiro entender que a outra pessoa não está falando com você, mas com um interlocutor imaginário que só existe na mente dela. Você precisa deixar claro que não é aquela projeção feita por ela, e trazer a conversa gentilmente para o campo da argumentação. “Mas não achem que isso vai dar certo logo pela primeira vez. É uma habilidade que exige prática. Porém, a cada vez que você falha, você aprende algo”.

É isso aí. Quem quiser ter democracia, relacionamentos interpessoais, essas coisas fúteis, vai precisar estudar Psicologia. Que seja. Ainda dá para prestar vestibular este ano.

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Meu e-mail é marcelinho@gmail.com. Suas sugestões e relatos ajudam bastante

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Por que esta eleição está acabando com nossa saúde mental, segundo psicólogos e psiquiatras https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/2018/10/04/por-que-esta-eleicao-esta-acabando-com-nossa-saude-mental-segundo-psicologos-e-psiquiatras/ https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/2018/10/04/por-que-esta-eleicao-esta-acabando-com-nossa-saude-mental-segundo-psicologos-e-psiquiatras/#respond Thu, 04 Oct 2018 17:09:37 +0000 http://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/files/2018/10/Screen-Shot-2018-10-04-at-11.19.39-150x150.jpg https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/?p=187 Quando reparei que não respirava há quase um minuto, percebi que a coisa estava ficando feia para mim. Isso foi há uns dez dias. Estava na cama, já passava das duas da manhã e rolava a timeline do Twitter no automático, na expectativa de a) me deparar com alguma notícia bombástica sobre a eleição, b) ler algum um comentário brilhante sobre o buraco em que nos metemos ou c) ver gifs de cachorros simpáticos. O que encontrei, no entanto, foram especulações insignificantes sobre a campanha, manifestações de pavor disfarçadas de ironia e dezenas de vídeos fofos de gatos.

Acompanhar esta eleição feita de notícias, declarações e manchetes traumatizantes estava acabando comigo. Decidi, então, entrar numa dieta rigorosa de informações. Há uma semana, atravesso a rua para não passar na frente de uma banca de revista, tapo os ouvidos e canto “lalalá” se uma TV estiver ligada no Jornal Nacional e saí de todos os grupos de Whatsapp e redes sociais relacionados ao noticiário. Só soube do problema na bexiga do Ciro Gomes (ele sentiu um desconforto na região e passou por um procedimento médico), por exemplo, na fila da padaria, que acredito ser a forma como Deus quis que soubéssemos desse tipo de coisa.

Nos últimos tempos, tenho prestado mais atenção em onde nasce a ansiedade no meu corpo. Começa nos dedos dos pés e logo chega aos ombros, que acabam empenados; a língua fica dura e empurra a arcada inferior como se quisesse dobrá-la; uma espécie de dormência nas narinas indica que não estou mais respirando.

Conversando com amigos, descobri que não sou a única pessoa que deu defeito na reta final desta eleição. Durante meu detox de jornal brasileiro, resolvi investigar se algo parecido havia acontecido na eleição dos Estados Unidos de 2016. Uma busca rápida mostrou que a saúde mental da população local saiu muito prejudicada daquele pleito. A Associação Psicólogica Americana divulgou uma pesquisa mostrando que, um mês antes da eleição de Donald Trump, 57% das pessoas estavam estressadas por causa da campanha e 66% citaram o futuro da nação como motivo para o incômodo. Os números de 2017, primeiro ano da guerra civil trumpiana, ainda não saíram.

A imprensa de lá perguntou aos profissionais de saúde mental o que eles estavam ouvindo nos consultórios. “As pessoas citam preocupações com o aquecimento global para começar a terapia”, disse a psicóloga Mary Fisher ao blog LifeHack. Segundo ela, inicialmente as pessoas se queixavam apenas de ansiedade. Mas, com o tempo, os sintomas se transformaram numa mistura de “fatalismo e depressão”. O colunista do Washington Post Dana Milbank disse que desenvolveu pressão alta por conta do ciclo eleitoral e foi inundado por mensagens de leitores que contavam estar na mesma situação. A lista de sintomas: distúrbios do sono, dor no pescoço, depressão, zunido no ouvido, perda de cabelo, aperto no peito, úlcera estomacal, indigestão, irritabilidade, refluxo.

Fiquei satisfeito com o que encontrei no exemplo americano para explicar minha ansiedade eleitoral. Mas, como não sou especialista em absolutamente nada neste mundo, resolvi perguntar a alguns dos maiores estudiosos brasileiros em ansiedade e estresse se eleitores em crise haviam batido em suas portas. Aproveitei para saber o que fazer para aliviar o sofrimento nesta reta final. Também conversei com alguns brasileiros que, como eu, não conseguem mais encarar o que quer que esteja acontecendo com o país neste momento.

A psiquiatra e psicóloga gaúcha Ana Maria Rossi é presidente da International Stress Management Association do Brasil, referência no estudo de estresse e ansiedade. “Essa profusão de pesquisas está afetando muito as pessoas. Meus próprios clientes não estão mais tolerando saber o que está acontecendo”, afirma. Além do excesso de informações, Ana Maria cita a rivalidade exagerada como motivo de preocupação. “Vejo um ódio, uma agressividade muito grandes. Sempre teve baixaria em campanha no Brasil, mas me parece que dessa vez a animosidade é maior. Somos nós contra eles, ou eles contra nós.”

A psicóloga Mariângela Savóia, pesquisadora do Ambulatório de Ansiedade do Hospital das Clínicas, diz que nunca viu seus pacientes tão preocupados com o quadro político como agora. “O que eu vejo mais é a ansiedade, uma grande preocupação antecipada, uma avaliação negativa do que vai acontecer”, afirma a psicóloga. “Quem tem dinheiro diz que vai sair do país, e isso independe da orientação ideológica.”

“Como individuo, você fica sem possibilidade de prospectar o seu futuro, algo que é necessário para a boa saúde mental”, diz Rafaela Teixeira Zorzanelli (sem parentesco direto comigo), psicóloga e professora do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Ela atualmente faz pesquisa sobre o abuso de tranquilizantes no Brasil em uma universidade holandesa, mas também está viciada em acompanhar o pleito de 2018. “Colegas têm dito que seus pacientes sentem que não têm qualquer controle sobre o futuro. Em todas as classes sociais, de consultórios do SUS até clínicas particulares que cobram caro.”

O psiquiatra Felipe Dias trabalha na rede pública do Rio de Janeiro. Segundo ele, a gravidade das queixas dos menos favorecidos o surpreendeu. “Essa grande polarização coloca os mais pobres num lugar muito mais de fim de mundo, de desespero completo. Isso tem causado o aumento no uso de tranquilizantes e piora certos quadros deprimidos”, afirma Felipe, que atende comunidades carentes em Niterói e na capital. “É uma sensação de iminência da falta dos serviços básicos dependendo de qual candidato ganhar. Vejo um voto desesperado ligado ao medo.”

Mecânico na pequena Miracatu, no interior de São Paulo, Milton Junior de Souza, de 29 anos, está desempregado há dois anos. Quem sustenta a casa é a mulher, cabeleireira, e um eventual bico que ele próprio consegue. Milton vai votar em Jair Bolsonaro. “Tudo o que está acontecendo nesta campanha política está nos deixando mais ansiosos e estressados”, diz o mecânico, que quer tentar a vida no Japão caso seu candidato perca. “Ficamos estressados pelo que a mídia faz contra o nosso candidato e porque não há clareza na campanha. “

O psiquiatra e professor de medicina social da UERJ Benilton Bezerra Jr. afirma não ter visto um abalo tão grande na saúde mental de seus pacientes em muito tempo. “Converso muito com as pessoas na rua e vejo o tamanho da confusão delas. Eu vejo gente que está dividida entre Jair Bolsonaro e Marina Silva, entre Bolsonaro e Ciro Gomes. Alguém que está com esta dúvida é porque realmente não está entendendo nada do jogo que está sendo jogado. E isso é muita gente”, disse.

“Quando estou olhando as redes sociais sinto crescer a ansiedade e uma angústia enormes”, diz um empresário de Vitória (ES), que prefere não se identificar. Simpatizante da direita, ele ainda não sabe quem escolher. “Eu já sou ansioso e essa eleição só piorou a situação. Mas acho que o pessoal progressista está sofrendo da mesma forma.” O empresário declara que não votaria no PT, nem em Bolsonaro. “Fica então aquela pressão. Mas eu não quero votar de jeito nenhum nele (Bolsonaro). Ah, mas tem que votar porque se não o PT volta. Aí eu penso ‘poxa, mas eu vou ser o responsável pela volta do PT?’ Isso te afeta.”

Segundo Ana Maria Rossi, está aí a característica desta eleição que mais tem feito mal às pessoas. “Vejo entre meus clientes muitos comentando que têm de votar em alguém com chance de derrotar ‘o outro lado’, em vez de votar naquela pessoa em que ela gostaria.” A psiquiatra continua: “Observo um aumento de pessoas com problemas de sono. Também cresceram as reclamações de dores musculares. As pessoas com os músculos mais tensos têm mais dores de cabeça, dor no pescoço, nos ombros, nas costas, pernas inquietas.”

A professora de sociologia Juliana Dourado trabalha numa universidade pública na Bahia e têm tido insônia, pesadelos e dificuldade de concentração. Ela diz que vota na esquerda e demonstra muita preocupação com uma possível vitória de Bolsonaro. “A gente estuda, passa anos debatendo, lendo, escrevendo, chega lá e abre a rede social e vê um monte de notícia falsa, montagens muito mal feitas… parece que tudo o que eu fiz foi em vão”, diz. “Eu tenho muito medo, trabalho numa faculdade nova, criada pelo governo de esquerda. Tenho receio de que o campus possa ser fechado no ano que vem. Isso gera uma instabilidade emocional muito grande, não consigo planejar nada para os próximos meses” afirma. Os sintomas que estão aparecendo são de isolamento, abulia, que é a falta de vontade de fazer as coisas, diz a psicóloga Rafaela. “Em vez de se confrontar, o indivíduo se retira, porque está batendo no limiar de sua tolerância para o sofrimento.”

Um outro traço muito moderno desta eleição são as discussões com pessoas queridas que têm posições contrárias.

“Debater com alguém, especialmente alguém com quem se tem laços afetivos, para tentar mudar um voto, tem um custo emocional muito grande”, diz Rafaela. “Muitas pessoas estão fazendo isso porque acreditam que a vida delas depende disso, então vão para a briga porque acreditam estar lutando pela sobrevivência. Algumas suportam melhor o embate com o outro, outras saem mais machucadas.”

O professor Benilton dá uma pequena aula sobre nossa incapacidade de exercer o debate civilizado: “Um traço muito brasileiro, que é diferente de outros países, o Brasil tem uma tradição cultural de aversão ao conflito explícito. Tudo é levado para o pessoal. Não somos educados para admitir e cultivar o conflito, o contraditório, a discussão. Nenhum amigo, em público, discorda de um amigo. Isso mesmo no mundo acadêmico, o que é lamentável.”

O resultado mais preocupante de tanta carga emocional negativa pode ser o agravamento de diagnósticos já complicados. “O nível de ansiedade tem feito com que alguns pacientes aumentem a dosagem dos remédios”, diz Ana Maria. “As pessoas também podem se valer mais do álcool para se anestesiar e mudar o foco, como uma forma de não vivenciar isso com muita intensidade.

O que fazer, então, para tentar salvar o pouquinho que nos resta de sanidade? A especialista em estresse Ana Maria e seus colegas têm uma listinha de sugestões:

“Limitar a exposição à mídia. O que eu preciso saber, o que é o bastante para que eu me sinta capacitado para votar? Ter disciplina, porque a curiosidade acaba sendo uma isca para manter a pessoa extrapolando seu limite por períodos muito longos.”

“Limitar essa necessidade que muitas pessoas têm de divulgar notícias bombásticas, esse instinto de espalhar tudo para os outros acharem que sou super bem informado.”

“Não conversar com pessoas que você sabe que são radicais. Se você sabe que o seu amigo, parente, colega de trabalho é radical, invente uma desculpa. Diga que está atrasado, que não pode falar agora, e fuja.”

“Vote por convicção, não para derrotar um outro candidato. Seja dono da sua própria ideologia. Concentre a energia e a atenção em eleger o candidato que acha que melhor vai resolver a situação do país.”

Uma vez mais calmo e tranquilo por saber que não é só você que está ficando maluco, fique com a mensagem democrata do professor Benilton:

“A solução é conversar, debater, estudar. Esta confusão não se dá em torno de programas, de projetos. É uma conflagração em torno de afetos e sentimentos. A pessoa precisa tentar sair do seu grupo, conversar com pessoas de fora da sua bolha com quem haja diálogo e tentar debater ideias, argumentos e dados sem medo de todas as contradições e dubiedades da qual a realidade está cheia. É preciso resistir à tentativa de simplificar tudo, abraçar a complexidade da situação.”

E usar a internet só para procurar gifs de cachorros fazendo coisas engraçadas até 2022.

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E você? Como tem se sentido nesta eleição? Estou aqui para ouvir a sua história. Meu email é marcelinho@gmail.com

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O suicídio é só mais uma história com final feliz que contamos para nós mesmos https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/2018/09/18/o-suicidio-e-so-mais-uma-historia-com-final-feliz-que-contamos-para-nos-mesmos/ https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/2018/09/18/o-suicidio-e-so-mais-uma-historia-com-final-feliz-que-contamos-para-nos-mesmos/#respond Tue, 18 Sep 2018 18:23:43 +0000 http://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/files/2018/09/ilustra-150x150.jpg https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/?p=174 Setembro amarelo. Eu sei que deveria escrever sobre ele, mas não consegui, talvez não da forma como penso que deveria. Aí é que está: até a mim, que estudo e converso bastante sobre saúde mental, o assunto trava esta cabeça que vos fala. Pensei até em usar o jargão criado pelos profissionais de saúde mental, auto-eliminação, numa tentativa de fazer o cérebro achar que eu falava de outra coisa. Mas desisti, uma vez que não sei se com a reforma ortográfica o certo é autoeliminação ou a versão com hífen. E também porque fui tirar a dúvida no Google e o primeiro resultado é a reportagem sobre um time que foi eliminado com um gol contra.

Peço perdão por este estilo caótico, que dá voltas e escorrega nas tangentes como criança em toboágua. Não sei se é só a santa e eterna insegurança de escritor ou se o assunto em si que é paralisante. Não há medo maior que o da desgraça de tentar ajudar alguém e acabar piorando tudo.

Bom, ao título pendurado no topo da crônica. Estive pensando nesses dias de campanha para ajudar a diminuir o estigma em torno do suicídio e abrir um canal de diálogo sobre a questão prática essencial: a morte, como resultado da depressão e outros transtornos associados, é perfeitamente evitável. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, 90% das pessoas que tentam suicídio e não têm sucesso (como é cruel esta palavra neste contexto) jamais tentam outra vez. Isso quer dizer que nove em cada dez suicídios são evitáveis.

Saber disso é ótimo, a campanha Setembro Amarelo é ótima, divulgar o número do Centro de Valorização da Vida é ótimo. Mas nem sempre o ótimo alcança quem está precisando.

Estive pensando sobre aquelas pessoas que simplesmente desaparecem. Tive um colega assim. Eu, que tenho consciência da minha depressão desde os 20 anos, tenho um certo orgulho de farejar transtornos mentais à distância. Convivi um ano com esse colega de trabalho. Comedido, generoso, justo, grande senso de humor, um gigante criativo; aos 30 e poucos, já tinha seu nome na história de sua arte. Ninguém sabia o que pensar quando ele provocou a própria morte. Eu não percebi nada.

Gostaria de falar com essa pessoa que não sabe muito bem por que tem pensado tanto em suicídio. Sei que você está aí. Olá. De vez em quando, acontece comigo também. Do nada, sinto os nervos balançarem ao me aproximar de janelas em adares altos. Sem aviso, a água sanitária da limpeza parece uma boa ideia.

As ideações suicidas são a coisa mais comum dessa vida: 4% da população as têm, segundo dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos. Aprendi a tratá-las como pernilongos que passam zunindo perto da orelha. De acordo com o budismo e a parte mais moderna da psicologia informada pela neurociência, pensamentos não passam disso. Quem já teve que dormir num lugar quente empesteado de mosquitos sabe que é uma batalha impossível de vencer. Tem que relaxar, tapar a orelha e esperar o dia amanhecer.

O que acaba com a noite não é o mosquito, é o tamanho que damos para o mosquito. É passar a noite inteira de luz acesa tentando caçar cada mosquito usando o travesseiro. É dizer para si próprio que é só com você próprio que isso acontece; que nesta mesma noite todo os outros 7 bilhões e lá vai fumo de seres humanos estão dormindo, especialmente aquele seu inimigo de sucesso, e que as cotas individuais de pernilongos de toda a humanidade fizeram do seu quarto uma espécie de praia da Normandia no dia D.

Acho mesmo que a ideação suicida levada a uma tentativa no mundo real, com planos, etc, em nada se diferencia do processo que nos faz tomar decisões imbecis como tentar namorar de novo um parceiro abusivo. Ou o mesmo processo que faz o dependente químico limpo há anos achar que “agora ele pode usar”. Sempre há uma historinha ali por trás, que distorce os fatos e monta uma narrativa mágica em que uma coisa que deu errado cem vezes dará certo desta vez, mesmo que nada tenha mudado.

Essas historinhas de final feliz que contamos para nós mesmos são criadas com pensamentos contaminados por sabe-se lá que traumas ocultos, que desequilíbrios da química do cérebro maquiados pelo frenesi do dia a dia.

Vou ficar um pouco técnico aqui, e por isso peço perdão. O palavrão composto desta vez é “dissonância cognitiva”, algo que acontece o tempo todo dentro de nós. Quando temos uma visão interior, um desejo, uma inclinação, uma certeza e a realidade diz o contrário, nossa mente entra num estado de crise. Digamos que você está de dieta e quer comer chocolate. Você sabe que não deve. Aí chegam as historinhas.

Você pode contar para si mesmo que “depois eu faço o dobro de exercício”, ou “vou comer salada no almoço”, ou ainda “li que ‘roubar’ na dieta um dia por semana é bom”. São maneiras mais ou menos realistas de conciliar a vontade de comer e a certeza de não será bom para a sua dieta (lembrando que o ideal é não comer, olha como já estão seus triglicerídeos!). Como o ser humano é muito criativo, ele pode também ir mais longe, para as águas quentinhas do autoengano. “Mas eu li que açúcar faz bem”, “vou rezar e Deus vai me ajudar a emagrecer”, “depois eu meto o dedo na garganta” etc. As águas da irracionalidade são muito confortáveis, mas tem um rodamoinho que puxa forte.

Dos mesmos criadores de “quando eu comprar aquela SUV da propaganda tudo vai melhorar na minha vida” e “se aquele cara que me deu um fora me chamar para sair eu passarei a ser uma pessoa feliz”.

Não é muito diferente o que acontece com alguém que consegue se convencer de que o mundo será melhor sem ela. Que sua família e seus amigos soltarão fogos de artifício se você desaparecer. Que tudo vai ser melhor se você tomar esta decisão. Primeiro: você não terá como saber se vai melhorar. Segundo: não melhora.

Então, repito aqui algo que foi uma das coisas mais importantes que já aprendi: seus pensamentos não são você. São “entidades” que desaparecem da mente se você parar de dar papo para elas, de tentar encaixá-las numa narrativa sobre “por que eu sou assim como eu sou”.

Sempre tem solução, sempre há esperança. A ciência está avançando e a sociedade vem a reboque. Os Estados Unidos estão vivendo uma revolução nos últimos anos sobre como tratar saúde mental publicamente. Você vê pelo número de celebridades deprimidas que que já saíram do armário: Cara Delevigne, Johnny Depp, Jim Carrey, Ellen DeGeneres, Eminem, Jon Hamm, Anne Hathaway, Angelina Jolie, Lady Gaga… A lista é maior que a nossa preguiça numa segunda-feira chuvosa. E não são pessoas que falam “ah, uma vez fiquei deprimido porque meu cachorro morreu”. Esses daí já falaram em internações, em remédio, em tentativa de suicídio.

Não acredite nas historinhas. Nada fica melhor de uma hora para outra com decisões radicais. Pensando melhor, tem algo que você pode fazer agora para começar a se sentir melhor: contar essa historinha que fica rodando na sua cabeça para todas as pessoas que quiserem ouvir você. Mostre suas vulnerabilidades: está aí uma atitude radical que eu lhe garanto que melhora sua vida e a dos outros (que também estão cheios de vulnerabilidades que adorariam dividir com alguém).

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É sempre bom saber o que você pensa sobre os cuidados com a saúde mental. Meu e-mail é marcelinho@gmail.com

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Prem Baba e a perversidade do predador em pele de curandeiro https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/2018/08/30/prem-baba-e-a-perversidade-do-predador-em-pele-de-curandeiro%e2%80%a8/ https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/2018/08/30/prem-baba-e-a-perversidade-do-predador-em-pele-de-curandeiro%e2%80%a8/#respond Thu, 30 Aug 2018 22:09:57 +0000 http://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/files/2018/08/531099-970x600-1-150x150.jpeg https://rirparanaomorrer.blogfolha.uol.com.br/?p=159 As pessoas que buscam o guru espiritual Prem Baba, de 52 anos, querem melhorar suas vidas. Alguns têm problemas psicológicos como depressão e ansiedade, outros sentem que perderam o propósito. Pessoas muito vulneráveis vão a seus retiros atrás de paz e significado.

Prem Baba foi acusado de abusar sexualmente de duas de suas seguidoras. Ele não nega o envolvimento. Os detalhes da denúncia feita pelo ex-marido de uma delas (leia no link para a coluna de Mônica Bergamo) são de fazer Krishna querer quebrar sua flauta sagrada de raiva.

O guru pop, que é recomendado com fervor por celebridades como Bruna Lombardi e Reynaldo Gianecchini, não seria o primeiro líder espiritual a cometer o que é, a meu ver, um dos crimes mais cruéis que se pode praticar: o abuso cometido por figuras de autoridade dentro de cultos e religiões.

A igreja católica refinou esta prática e a transformou em uma de suas principais marcas. No Brasil, pastores neopetencostais são denunciados e presos com frequência. Nesta semana, o pastor Justino Ireno da Costa, de Cuiabá, foi preso por abusar de 10 crianças em um bairro carente da cidade. Outro, de São Luis, foi preso pelo estupro de uma menina de 11 anos enquanto tentava fugir pelo aeroporto Santos Dumont.

Qualquer beatlemaníaco de baixa patente sabe da história por trás da faixa “Sexy Sadie”, do Álbum Branco. Em um retiro na Índia em 1968, o guru Maharishi Mahesh Yogi recebeu os Beatles e outras celebridades. Maharishi teria assediado a atriz Mia Farrow. “Sexy Sadie, você quebrou as regras” e “O que você fez? Você fez o mundo inteiro de bobo” são versos da canção.

Figuras revestidas de autoridade religiosa têm o poder de despir seus seguidores da desconfiança e de barreiras racionais. Faz parte do processo que pode trazer paz e tranquilidade a uma alma turbulenta. Ou pode ser a arma mais perigosa do mundo.

A crença nos ensinamentos se confunde com a confiança na pessoa por trás da bata ou da batina.

Por isso, acho que a lei que versa sobre abuso sexual e estupro deveria ter um agravante para líderes religiosos (acho também que profissionais de saúde mental que cometerem este crime deveriam ter o mesmo tipo de punição mais grave).

Abusar sexualmente de alguém que está sofrendo por conta de traumas e se abre diante de um cuidador é, na minha opinião, uma espécie de estupro de vulnerável.

Em que outra situação um adulto, como no caso das mulheres que acusam Prem Baba, seria convencido que fazer sexo com um estranho teria efeitos mágicos sobre sua saúde? Esse tipo de argumentação fantasiosa só funciona diante da inocência das crianças ou de alguém fora do controle de suas faculdades mentais.

O psicólogo Janderson Fernandes, nome de batismo de Prem Baba, um dia foi um homem preso a um casamento em crise que chegou a participar de rituais com o chá alucinógeno do Santo Daime antes de se tornar um mestre iogue na Índia. Sob orientação de uma sumidade do hinduísmo, assumiu o nome de Prem (amor divino) Baba (Santidade).

Que tipo de perversidade pode fazer com que alguém que já se beneficiou dos ensinamentos do hinduísmo, uma das religiões mais belas e pacíficas do mundo, a usar o que aprendeu para ferir inocentes?

Pessoalmente, sempre achei que comunidades que cultuam a personalidade de seu líder têm a mesma chance de dar certo que o Temer tem de criar trabalho para os 27,7 milhões de brasileiros desempregados até o fim do mandato.

Essa história de guru pop com um pé no falido movimento New Age não me parece um caminho venerável, por assim dizer. O despertar espiritual é lento e um processo voltado para dentro. Essa espécie de “despachante da alma”, com delivery de paz e esperança, que facilita o processo de acordo com o preço na tabelinha não entra na minha cabeça.

Após o estouro da bomba e do anúncio de seu “recolhimento” por tempo indeterminado, o guru postou no Twitter a seguinte mensagem:

“A crise representa uma necessidade de mudança, um desapego. Significa que algo precisa ir embora. E quanto maior o apego àquilo que precisa ir embora, maior a resitência ao processo de transformação e, consequentemente, maior o sofrimento”.

Pode ir embora, Janderson, que o sofrimento você já deixou por aqui.

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Meu e-mail é marcelinho@gmail.com

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