Velhas e santas humilhações
Há uma expressão de Nelson Rodrigues que pode não ser famosa como suas grandes frases, mas não me sai da memória jamais.
Não me lembro se a vi sendo repetida por um dos ingênuos que tenta imitar o estilo rodrigueano em seus textos; e, olha, nós jornalistas não temos dinheiro mas temos centenas de colegas que se prestam a esse papelão.
Eu mesmo fui um deles, numa época em que lia os volumes de crônicas do Nelson até debaixo do chuveiro. Saía uma coluna assinada por mim numa revista da editora Abril e eu fazia o meu melhor para soar como o autor de máximas como “Dinheiro compra até amor verdadeiro”, “Toda unanimidade é burra”, “O brasileiro é um feriado” e “Até os canalhas envelhecem”. (Peço que não procurem a tal coluna – tenho certeza de que os textos são piores que infiltração em teto de apartamento).
Pois bem, a tal expressão rodrigueana que nunca sai da minha cabeça não vale mais o suspense, até porque está no título deste texto. “Velhas e santas humilhações”.
Nelson saca essa expressão quando fala de traumas antigos vividos por algum dos heróis reais ou inventados de suas crônicas e contos. O tema geralmente é sério, mas a expressão tem cheiro de falsa comiseração e da pomposidade de um poeta jesuíta do século 17. Na mão de Nelson, o trauma que afoga o sujeito em angústia acaba virando motivo de gargalhadas.
(Um dos maiores defeitos que enxergo nas adaptações de suas peças é o de tratar as tragédias com seriedade. Ele fazia questão de escrever personagens pensando em escalar os maiores canastrões do mercado como seu cunhado Jece Valadão. Se alguém conta que tem câncer, sempre há o contraponto da interlocutora ser a vizinha que escuta enquanto coça a axila com um grampo de cabelo.)
Voltando às humilhações: o melhor exemplo de seu emprego (melhor porque é o único que me lembro de cabeça) é quando Nelson conta a história pessoal de um terno de segunda ou terceira mão que usava para trabalhar no início da carreira. Era a única roupa de trabalho que possuía; sua pobreza era tão grande que uma lavanderia era tão acessível quanto o chá das cinco no palácio de Buckingham. O conjunto era usado todos os dias no calor vil do Rio de Janeiro e você pode imaginar que tipo de aroma anunciava a chegada do rapaz à redação onde trabalhava.
Passado algum tempo, seu irmão mais velho (que trabalhava no mesmo jornal) o chama de lado e diz que ele virara assunto nas rodas. Que o fedor havia tornado o ambiente de trabalho insalubre para os demais. Nelson, desesperado, professa ao irmão que toma banho e passa perfume todos os dias: “Não sou eu! É o terno! É o terno!”
Aí está uma velha e sagrada humilhação que o perseguiu até o fim dos dias; nas ciências que estudam a mente, chama-se de “trauma”. Nelson cita a crise do terno em diversas crônicas – parece que recorda-se dela em busca de inspiração quando quer praticar seu humor autodepreciativo de gênio.
Tudo é trauma. Traumas psicológicos são o que movem o mundo – vingança contra traumas antigos é uma das narrativas preferidas do Ocidente. Estamos sempre protegendo nossas velhas e santas humilhações como relíquias, sem fazer outro uso delas que não alimentar nossos piores instintos.
Pois fico pensando cada vez mais nos artistas que transformam suas feridas psicológicas em coisas bonitas e também coisas engraçadas, como fez o sofrido, mil vezes sofrido Nelson Rodrigues (leiam O Anjo Pornográfico, a biografia definitiva escrita por Ruy Castro para saberem o que é ter tragédias na vida). Até na crônica em que anunciava que sua filha havia nascido cega há uma mistura indefinível de angústia e comicidade. É aquela espécie de dor forte que faz você rir num espasmo.
Ainda não encontrei a coragem para fazer das minhas humilhações pessoais obras de humor e graça, mas a intenção é forte. O sonho é que, um dia, irmãs e irmãos de infortúnios possam encontrar no que escrevo um pouco de reconhecimento e, quem sabe, alívio.
Por isso, fico por aqui. Leiam as crônicas de Nelson Rodrigues. (Frase ideal para terminar qualquer texto, aliás).