João de Deus e a compulsão suicida em entregar nossa espiritualidade a charlatães
A ciência diz que o ser humano desenvolveu a linguagem para que avisássemos uns aos outros sobre perigos, isso lá nas planícies africanas há 200 mil anos. Leões, cobras, escorpiões, tribos rivais, só barra pesada. O “eu te amo” e o “nossa, como você emagreceu” só viriam muito depois.
As boas notícias como uma árvore carregada de frutas, um filete de água limpa ou um parceiro do sexo oposto eram raras e bem menos urgentes perto da quantidade de predadores que cercavam os homo sapiens.
Talvez por isso nossa linguagem tenha poucos nomes para coisas boas e muitos para coisas ruins. Deus, por exemplo. Só consigo lembrar de “Todo-Poderoso” (que posso estar escrevendo errado, já que desconheço se tem hífen e onde há maiúsculas; se errei, peço perdão, bom Deus).
Bom, já seu desafeto tem centenas de nomes, um mais criativo que o outro: tinhoso, ardiloso, satanás, capeta, belzebu, escacha-pedras, capiroto, beiçudo, lá-de-baixo, coisa-ruim, mofento, pé-de-cabra, chifrudo, rabão, demo, demonho.
Disse tudo isso porque quero comentar o caso do fazendeiro João Teixeira, que durante décadas desempenhou o papel de curandeiro no interior do estado de Goiás e também pelo mundo.
O que me espanta é como a necessidade do ser humano de encontrar uma saída fácil e instantânea para seus problemas supere o instinto de sobrevivência programado na base do nosso DNA. A linguagem apareceu para que pudéssemos evitar e colaborar para derrotar predadores.
Mas ela não é sufiente para derrotar nossa queda por figuras carismáticas que prometem o que a realidade nos provou não ser possível. Eles não apenas ganham a queda de braço com a ciência como arrebanham tantos quantos caibam em seus currais.
Há muito o que não sabemos sobre curas alternativas, sobre o poder da mente humana. Pessoalmente, acredito em milagres. Por exemplo: Não há outra maneira de explicar como o Brasil ainda existe com o brasileiro votando do jeito que vota.
Mas a espiritualidade é uma obrigação individual.
Terceirizando a responsabilidade sagrada, pessoal e intransferível de descobrir o que é a vida, para que ela serve, por que ficamos doentes, o que significa a morte, para que serve o sofrimento, colocando essas respostas na mão de um ser humano dotado de poder e influência – estamos reunindo os ingredientes para sucessivos desastres.
Fatalmente, um desses curandeiros, gurus descolados, padres e pastores populares será um psicopata que destrói centenas de vidas sem trocar a expressão do rosto. Chega de mitos.
(Um parêntese. Demorei muito a escrever isso aqui. Minha vontade mesmo era gritar um som feio e grosso, que se transformasse em choro convulsivo quase imperceptivelmente. É esse o tamanho da dor que sinto pelo desastre que João Teixeira causou na vida de mais de 300 mulheres.)
Não bastaram os milhares de padres católicos que molestaram crianças pelo mundo, pastores estupradores todos os dias no noticiário brasileiro, os gurus do andar de cima do estrato social que incluem estupro em seus receituários espirituais….
Temos muitas, muitas palavras para o capeta, aquele que escraviza almas e as tortura para a eternidade. Um deles, no Brasil, anotem aí dicionaristas, será “João”. Sobrenome: “de Deus”.
A espiritualidade – que para mim é a habilidade de encontrar dentro de si as ferramentas para viver em paz e harmonia; outras pessoas chamam isso de Deus – pode ser explorada entre pares. Pares iguais, irmãos, colaboradores.
Vamos falar sobre nossa dor, vamos pedir milagres, mas vamos nos abrir entre pares, não a ilusionistas que usam miúdos de galinha para fingir tirar um tumor de barrigas e que destroem vidas de mulheres em salas fechadas.
***
Sugestões e críticas: marcelinho@gmail.com