A censura prévia que já está valendo

Foto: Kat Jayne / Pexels
Marcelo Zorzanelli

Não sei como chegamos até aqui nem pela mão de quem descemos a este círculo do inferno, mas a verdade é que o brasileiro já vive um regime de censura prévia.

Tenho tentado, com um entusiasmo meia-bomba, mas vá lá, conversar com pessoas que professam ódio à esquerda, campo ideológico com o qual me identifico. Amigos, parentes, colegas. Confesso que algumas vezes minha paciência se esgotou mais rápido que as baterias desses smartphones mais novos. Mas não houve uma vez em que o resultado tenha sido um aperto de mão. No melhor desfecho, ouvi algo como “mas você, um rapaz tão honesto, metido nessas coisas…”. Na pior, fui xingado por um tio no grupo de família do Whatsapp, um trauma ainda longe de superado.

Tudo bem. O ansiolítico para esses conflitos, seja para mim ou para quem se abalou do outro lado, é voltar para a bolha das redes sociais. Aquele lugar quentinho em que você conta como está cercado de pessoas toscas e recebe uma injeção de dopamina na forma de likes e comentários afinados com o seu pensamento. O problema é que ali também não há debate, não há diálogo de ideias opostas, não há dissonância. Não vai resolver nada.

Desistimos de conversar com o outro. Na minha opinião, quem desiste de falar porque o ambiente não é amigável é vítima de uma censura prévia. Autoimposta, mas censura.

Na semana passada, escrevi sobre como a crise política e econômica tem gerado efeitos perversos na saúde mental das pessoas. Entrevistei seis psicólogos e psiquiatras que contaram como seus consultórios estão cheios de pessoas em crise por causa da eleição. De horas de entrevista, a frase que falou mais alto para mim foi a do professor Benilton Bezerra Jr., do Instituto de Medicina Social da UERJ: “O Brasil tem uma tradição cultural de aversão ao conflito explícito. Tudo é levado para o pessoal. Não somos educados para admitir e cultivar o conflito, o contraditório, a discussão. Nenhum amigo, em público, discorda de um amigo.”

Eu não aprendi a debater, fui criado na sombra da máxima “política, futebol e religião não se discute”. Talvez por isso sejamos essa massa sem ideologia, que sempre vota em convulsões para um lado e para outro, ora se vingando de A ao eleger B, para logo depois trair o canalha do B com o A.

Na minha experiência, política sempre foi assunto proscrito, reduzido a narrativas frouxas, um rendado de fragmentos de fatos e nenhum contexto. Se você ainda não desistiu de mim, deve estar se perguntando o que isso tem a ver com saúde mental. Acredito que tudo. Dezenas de pessoas me escreveram após a coluna anterior expondo crises de ansiedade, agravamento de depressões durante este processo eleitoral. Muitos dos relatos expressavam a falta de condições para conversar com aqueles que professavam voto no candidato oposto como um enorme incômodo, uma sensação de falta de voz, de isolamento social.

Fomos feitos para conversar. Desde o primeiro balbucio que alertava o companheiro para a cobra que preparava o bote na caverna até o “como foi o seu dia?” na hora do jantar, precisamos de comunicação de qualidade para ter saúde mental. Sem comunicação não há laços afetivos, sem se relacionar intelectualmente num ambiente estável e de respeito à lógica somos alguma forma de vida inferior até aos organismos monocelulares que avisam ao outro quando estão a fim de procriar.

Acompanho a escalada da loucura de muito perto desde o final do ciclo eleitoral de 2014. Como um dos autores do Sensacionalista, vi a cobra nascer e engordar. Se não gostavam de uma piada que defendia os direitos humanos, faziam lá um arrazoado pedindo o fim do site porque, pasmem, policiais também morrem. Acho que fomos uns dos primeiros humoristas de destaque a serem chamados de comprados pelo PT diariamente; sendo que, com a mesma periodicidade, batemos em Dilma, em Lula, e em o que de ruim o partido fez.

Quem dá a cara para bater se acostuma, cria calo, bloqueia, segue falando o que acredita. Mas a conversa pessoal, cara a cara, seguiu o mesmo caminho. Eu não acreditava que fosse possível. Em algum momento, a vida real se tornou a infame caixa de comentários do G1.

Não vou falar mais de fake news, porque você deve querer menos ler sobre isso do que eu quero digitar novamente essa maldita expressão. Quem gosta de boataria e mentira tem que se ver com a Justiça. Meu ponto é que, coincidência ou não, o fenômeno cresceu com o enfraquecimento do diálogo pacífico. Nesse espaço cresceu a intolerância de figuras que não deveriam ser eleitas nem para administrar uma prateleira de armário. Quem quer isso? O que fazer agora?

Conversei com o professor de o professor de Psicanálise da USP Christian Dunker, que faz um trabalho formidável para popularizá-la e esclarecer dúvidas sobre saúde mental em um canal de YouTube (ele já tem 97 mil inscritos). Dunker sugere a quem deseja reabrir o diálogo com pessoas extremadas uma abordagem que ele chama de “clínica”. Quem está escutando deve primeiro entender que a outra pessoa não está falando com você, mas com um interlocutor imaginário que só existe na mente dela. Você precisa deixar claro que não é aquela projeção feita por ela, e trazer a conversa gentilmente para o campo da argumentação. “Mas não achem que isso vai dar certo logo pela primeira vez. É uma habilidade que exige prática. Porém, a cada vez que você falha, você aprende algo”.

É isso aí. Quem quiser ter democracia, relacionamentos interpessoais, essas coisas fúteis, vai precisar estudar Psicologia. Que seja. Ainda dá para prestar vestibular este ano.

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Meu e-mail é marcelinho@gmail.com. Suas sugestões e relatos ajudam bastante