O suicídio é só mais uma história com final feliz que contamos para nós mesmos
Setembro amarelo. Eu sei que deveria escrever sobre ele, mas não consegui, talvez não da forma como penso que deveria. Aí é que está: até a mim, que estudo e converso bastante sobre saúde mental, o assunto trava esta cabeça que vos fala. Pensei até em usar o jargão criado pelos profissionais de saúde mental, auto-eliminação, numa tentativa de fazer o cérebro achar que eu falava de outra coisa. Mas desisti, uma vez que não sei se com a reforma ortográfica o certo é autoeliminação ou a versão com hífen. E também porque fui tirar a dúvida no Google e o primeiro resultado é a reportagem sobre um time que foi eliminado com um gol contra.
Peço perdão por este estilo caótico, que dá voltas e escorrega nas tangentes como criança em toboágua. Não sei se é só a santa e eterna insegurança de escritor ou se o assunto em si que é paralisante. Não há medo maior que o da desgraça de tentar ajudar alguém e acabar piorando tudo.
Bom, ao título pendurado no topo da crônica. Estive pensando nesses dias de campanha para ajudar a diminuir o estigma em torno do suicídio e abrir um canal de diálogo sobre a questão prática essencial: a morte, como resultado da depressão e outros transtornos associados, é perfeitamente evitável. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, 90% das pessoas que tentam suicídio e não têm sucesso (como é cruel esta palavra neste contexto) jamais tentam outra vez. Isso quer dizer que nove em cada dez suicídios são evitáveis.
Saber disso é ótimo, a campanha Setembro Amarelo é ótima, divulgar o número do Centro de Valorização da Vida é ótimo. Mas nem sempre o ótimo alcança quem está precisando.
Estive pensando sobre aquelas pessoas que simplesmente desaparecem. Tive um colega assim. Eu, que tenho consciência da minha depressão desde os 20 anos, tenho um certo orgulho de farejar transtornos mentais à distância. Convivi um ano com esse colega de trabalho. Comedido, generoso, justo, grande senso de humor, um gigante criativo; aos 30 e poucos, já tinha seu nome na história de sua arte. Ninguém sabia o que pensar quando ele provocou a própria morte. Eu não percebi nada.
Gostaria de falar com essa pessoa que não sabe muito bem por que tem pensado tanto em suicídio. Sei que você está aí. Olá. De vez em quando, acontece comigo também. Do nada, sinto os nervos balançarem ao me aproximar de janelas em adares altos. Sem aviso, a água sanitária da limpeza parece uma boa ideia.
As ideações suicidas são a coisa mais comum dessa vida: 4% da população as têm, segundo dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos. Aprendi a tratá-las como pernilongos que passam zunindo perto da orelha. De acordo com o budismo e a parte mais moderna da psicologia informada pela neurociência, pensamentos não passam disso. Quem já teve que dormir num lugar quente empesteado de mosquitos sabe que é uma batalha impossível de vencer. Tem que relaxar, tapar a orelha e esperar o dia amanhecer.
O que acaba com a noite não é o mosquito, é o tamanho que damos para o mosquito. É passar a noite inteira de luz acesa tentando caçar cada mosquito usando o travesseiro. É dizer para si próprio que é só com você próprio que isso acontece; que nesta mesma noite todo os outros 7 bilhões e lá vai fumo de seres humanos estão dormindo, especialmente aquele seu inimigo de sucesso, e que as cotas individuais de pernilongos de toda a humanidade fizeram do seu quarto uma espécie de praia da Normandia no dia D.
Acho mesmo que a ideação suicida levada a uma tentativa no mundo real, com planos, etc, em nada se diferencia do processo que nos faz tomar decisões imbecis como tentar namorar de novo um parceiro abusivo. Ou o mesmo processo que faz o dependente químico limpo há anos achar que “agora ele pode usar”. Sempre há uma historinha ali por trás, que distorce os fatos e monta uma narrativa mágica em que uma coisa que deu errado cem vezes dará certo desta vez, mesmo que nada tenha mudado.
Essas historinhas de final feliz que contamos para nós mesmos são criadas com pensamentos contaminados por sabe-se lá que traumas ocultos, que desequilíbrios da química do cérebro maquiados pelo frenesi do dia a dia.
Vou ficar um pouco técnico aqui, e por isso peço perdão. O palavrão composto desta vez é “dissonância cognitiva”, algo que acontece o tempo todo dentro de nós. Quando temos uma visão interior, um desejo, uma inclinação, uma certeza e a realidade diz o contrário, nossa mente entra num estado de crise. Digamos que você está de dieta e quer comer chocolate. Você sabe que não deve. Aí chegam as historinhas.
Você pode contar para si mesmo que “depois eu faço o dobro de exercício”, ou “vou comer salada no almoço”, ou ainda “li que ‘roubar’ na dieta um dia por semana é bom”. São maneiras mais ou menos realistas de conciliar a vontade de comer e a certeza de não será bom para a sua dieta (lembrando que o ideal é não comer, olha como já estão seus triglicerídeos!). Como o ser humano é muito criativo, ele pode também ir mais longe, para as águas quentinhas do autoengano. “Mas eu li que açúcar faz bem”, “vou rezar e Deus vai me ajudar a emagrecer”, “depois eu meto o dedo na garganta” etc. As águas da irracionalidade são muito confortáveis, mas tem um rodamoinho que puxa forte.
Dos mesmos criadores de “quando eu comprar aquela SUV da propaganda tudo vai melhorar na minha vida” e “se aquele cara que me deu um fora me chamar para sair eu passarei a ser uma pessoa feliz”.
Não é muito diferente o que acontece com alguém que consegue se convencer de que o mundo será melhor sem ela. Que sua família e seus amigos soltarão fogos de artifício se você desaparecer. Que tudo vai ser melhor se você tomar esta decisão. Primeiro: você não terá como saber se vai melhorar. Segundo: não melhora.
Então, repito aqui algo que foi uma das coisas mais importantes que já aprendi: seus pensamentos não são você. São “entidades” que desaparecem da mente se você parar de dar papo para elas, de tentar encaixá-las numa narrativa sobre “por que eu sou assim como eu sou”.
Sempre tem solução, sempre há esperança. A ciência está avançando e a sociedade vem a reboque. Os Estados Unidos estão vivendo uma revolução nos últimos anos sobre como tratar saúde mental publicamente. Você vê pelo número de celebridades deprimidas que que já saíram do armário: Cara Delevigne, Johnny Depp, Jim Carrey, Ellen DeGeneres, Eminem, Jon Hamm, Anne Hathaway, Angelina Jolie, Lady Gaga… A lista é maior que a nossa preguiça numa segunda-feira chuvosa. E não são pessoas que falam “ah, uma vez fiquei deprimido porque meu cachorro morreu”. Esses daí já falaram em internações, em remédio, em tentativa de suicídio.
Não acredite nas historinhas. Nada fica melhor de uma hora para outra com decisões radicais. Pensando melhor, tem algo que você pode fazer agora para começar a se sentir melhor: contar essa historinha que fica rodando na sua cabeça para todas as pessoas que quiserem ouvir você. Mostre suas vulnerabilidades: está aí uma atitude radical que eu lhe garanto que melhora sua vida e a dos outros (que também estão cheios de vulnerabilidades que adorariam dividir com alguém).
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É sempre bom saber o que você pensa sobre os cuidados com a saúde mental. Meu e-mail é marcelinho@gmail.com