O suicídio da fundadora do Femen e a opressão sobre a saúde mental feminina

Marcelo Zorzanelli

Deprimidos sempre leem sobre suicídios no noticiário. Muita gente lê, mas o deprimido, como que por ofício, quer saber de tudo sobre o assunto. Acredito que não faça bem, mas é assim.

Acho difícil resistir quando você tem uma doença cujo pior sintoma é justamente a voz encantadora que repete com frequência que talvez não existir seja melhor que existir. É por isso que há um acordo mudo entre jornalistas para não noticiar suicídios. Há o medo de que eles possam inspirar quem está no limite. Sou a favor de não dar detalhes, divulgar métodos, o que foi escrito na fase aguda do sofrimento. Acredito que isso possa fazer mal.

Mas não acho justo apagar a memória de uma pessoa porque ela morreu de uma doença. Como a regra não vale para figuras públicas (a boataria é sempre pior), acabamos lendo com frequência sobre algum caso. Há algum tempo, foi Anthony Bourdain. Ontem, foi a co-fundadora do movimento Femen, Oksana Shachko. Ela havia abandonado o grupo e se tornado pintora em Paris, onde morreu.

O Femen entrou para o anedotário da imprensa mundial como “aquele grupo de louras feministas radicais que escreve palavras de ordem nos peitos nus e é agarrada por policiais”. Não conheço o trabalho do grupo além das manchetes, mas sei que sua presença no Brasil é controversa. Não tenho opinião sobre o movimento.

Os obituários na imprensa brasileira e em inglês deram poucos detalhes. Foram em jornais e revistas franceses que encontrei os detalhes de uma vida que merece ser lembrada. E de um esforço incansável contra um sistema opressivo que merece ser celebrado.

Consigo imaginar o que foi a vida para a ucraniana Oksana, nascida na pequena cidade de Khmelnytskyi em 1987. Aos 8 anos de idade, a família descobriu se tratar de uma criança prodígio na pintura. Foi matriculada numa aula em que os colegas eram adultos.

Oksana conseguia se infiltrar nas igrejas de Kiev, para onde havia se mudado, para desenhar santos e mártires da iconografia cristã ortodoxa. Aos 12 anos, Oksana teria tido uma “crise de fé”. Ela pediu à mãe para ir para um convento para “se casar com Deus”. A mãe proibiu.

Não há notícias sobre o que ela fez no meio tempo, mas aos 21 Oksana fez seu primeiro ato público pelo Femen na Ucrânia. Ela e algumas amigas ficaram de calcinha e sutiã para protestar contra a prostituição online. “A Ucrânia não é um puteiro”, era um dos gritos de guerra.

A Copa da Rússia deu uma certa ideia de como o país lida com o assédio sexual. Descobrimos que não há, dez anos depois do primeiro ato do Femen, uma lei que condene claramente o assédio. No ano passado, o congresso russo passou uma lei que descriminaliza alguns tipos de violência doméstica.

Oksana pediu asilo político à França em 2013 e desde então vivia em Paris. Ela teve seu status de refugiada reconhecido após ser torturada por oficiais na Bielorússia em 2011 em seguida a um protesto do Femen. Ela e colegas teriam sido obrigadas e tirar toda a roupa numa floresta, tiveram óleo combustível jogado sobre seus corpos por oficiais que ameaçavam atear fogo sobre seus corpos. Em seguida, elas tiveram os cabelos cortados à força.

Viver na França não foi garantia de segurança: em 2014, um skinhead invadiu um clube em que o Femen promovia uma festa e esfaqueou duas pessoas enquanto procurava pelos “líderes” do movimento. Segundo amigos, Oksana se sentiu culpada pelo resto da vida.

Em 2015, ela se desentendeu com os caminhos que o grupo que criou havia tomado e resolveu voltar a se expressar pela pintura. Os ícones religiosos bizantinos voltaram, mas transfigurados por todo tempo de militância contra a homofobia, opressão da mulher, xenofobia, etc. Sua arte é puro sacrilégio.

Quadro de Oksana Shachko (Reprodução)

“O movimento mudou. As meninas chegam porque querem ganhar status fashion e parecer que estão na última tendência. Na Ucrânia, é rebelião de verdade. Elas copiaram os slogans e métodos mas não é o mesmo espírito”, disse em 2016.

“Continuo a criticar as religiões porque a imagem que elas fazem das mulheres é uma imagem de submissão”, contou sobre suas telas sobre folhas de ouro.

“Ao descobrir que ela foi do Femen, eu estava cético a princípio”, disse o curador Azad Asifovich. “Mas era uma artista de verdade, que dominava técnicas muito especiais”.

Mesmo com o modesto sucesso que lhe rendeu citações em jornais como o Le Figaro, a vida continuava difícil. A amiga Apolonia Breuil, com quem morou por cinco anos, disse ao jornal Libération que ela morava num cubículo com apenas um armário e sofria com a solidão.

Numa entrevista em 2016, Oksana disse: “Amo minha liberdade na França, mas não é fácil ser um refugiado, não poder ver minha família, minha mãe. O conflito na Ucrânia [a guerra civil entre grupos pró-Rússia financiados por Putin e quem deseja que o país fique independente] também não ajuda. Tive que encontrar novos amigos, a viver numa nova sociedade.”

Ela foi admitida na escola de Belas Artes de Paris no início do ano mas, segundo a amiga, sua vida não melhorou. “Ela já era uma artista pronta que se viu cercada por pessoas muito mais jovens. E a Belas Artes continua sendo uma instituição estruturada e pretensiosa. Ela se sentiu fora do lugar, especialmente em face do que viveu antes”.

Oksana, descrita como “sem medo e vulnerável” por uma colega de Femen, tentou suicídio duas vezes nos últimos anos. Exilada, sem ideologia, sem turma e sem dinheiro, sucumbiu à doença da depressão antes que pudesse ser ajudada. O mundo perdeu uma guerreira (concorde-se ou não com sua ideologia) “cujas cicatrizes estavam nas telas”, de acordo com o crítico do Le Parisien.

Nem mesmo vivendo intensamente suas angústias e obsessões nas telas, a ucraniana de 31 anos conseguiu atravessar seu inferno. Sem ajuda, sem apoio, depois de muitas batalhas e sucessivas derrotas, foi ao chão. Que sua história sirva de exemplo para quem ainda evita se cuidar da melhor maneira possível. E que também sirva de inspiração para quem acha que deve lutar por alguma coisa.

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Meu e-mail é marcelinho@gmail.com. É sempre muito bom saber o que quem passa por transtornos de humor pensa sobre o que escrevo e como faz para ter mais qualidade de vida.