Crônica da tentativa de suicídio que parou a capital do ES e revelou como precisamos falar sobre isso

A Terceira Ponte é motivo de orgulho entre os capixabas. Por ela passam 70 mil veículos por dia no trânsito entre a capital Vitória, uma ilha, e a cidade continental de Vila Velha. A viagem de cinco minutos é um convite à contemplação do oceano Atlântico, de um lado, e o morro com o Convento da Penha, do outro.

De vez em quando, um desses 70 mil veículos para no vão central de 70 metros de altura, o segundo mais alto do país. Uma pessoa caminha até a mureta e…

Aconteceu hoje mais uma vez. Às 10h20, o trânsito foi parado nos dois sentidos. O homem entre 30 e 40 anos foi logo abordado pelo Corpo de Bombeiros e pela Polícia Militar num trabalho que eles infelizmente conhecem muito bem. Em 2016, foram 46 tentativas de suicídio na Terceira Ponte. Dez foram fatais.

A tentativa de suicídio de hoje foi mais uma vez evitada pelo trabalho da PM e dos bombeiros capixabas. Palmas, de pé, para eles.

Antes disso, no entanto, faltam palavras para descrever algo que aconteceu. Um rapaz furou o bloqueio com uma moto e tentou se jogar da ponte a alguns metros de onde se desenrolava a outra crise. Foi impedido imediatamente por um oficial.

Sou capixaba e estou morando em Vitória neste ano após 13 anos entre São Paulo e Rio. Vi o que estava acontecendo pela TV, montei na bicicleta e fui para a praça do pedágio da ponte para ouvir quem estava lá.

O nó no trânsito é difícil de explicar. É como se todas as marginais de São Paulo fossem fechadas de uma vez. Se os túneis para a Zona Sul do Rio fossem interditados.

O que acontece quando alguém ameaça se jogar de lá de cima parece coisa de ficção. Ou de um experimento filosófico. Centenas de milhares de pessoas que dependem do trânsito são obrigadas a parar seu dia e contemplar a ideia do suicídio do próximo enquanto se está atrasado para um compromisso. O resultado não é bonito.

Da última vez em que a ponte ficou parada por muito tempo, no ano passado, a vítima também foi salva. Mas o relato do repórter Aglisson Lopes do jornal A Gazeta registrou a face feia do capixaba que quer usar a ponte para dar sequência ao seu dia.

No texto “Sabe a empatia? Pulou da ponte hoje”, ele relata cenas como esta: um homem diz que tem mais é que matar “este bandido” (no caso, quem ameaçava pular). Um bombeiro então pergunta como ele sabe que o outro é bandido. “Não sei, mas tem de matar!”, é a resposta. Aglisson relatou o horror de um pequeno tribunal em que pessoas votavam que destino deveria ter a pessoa.

Hoje, a ponte ficou parada por cinco horas debaixo de um sol que não se deu conta de que estamos a dez dias do inverno. Calor de 25 graus.

Cheguei lá por volta das 13h30, quando as pessoas já estavam ali há mais de três horas. Boatos de que o homem estaria armado, de que teria pedido a presença da namorada, de que esperaria até às 16h para “tomar uma decisão” rondavam entre os carros com motor desligado.

A banalização desse tipo de ocorrência fez brotar alguns especialistas sem diploma na sociedade local. “Esse aí não vai pular, não. Eu conheço quando o cara vai”, disse um rapaz de braços cruzados sob a sombra do pedágio. Uma senhora de óculos grandes cravou: “Pelo tempo que ele está ali, já era para ele ter ficado grogue e ter caído”.

Cheguei perto de um agricultor numa kombi lotada de verduras que era um dos primeiros na fila. Perguntei se ele esperava há muito tempo. Não disse nada sobre tempo, já foi logo dizendo: “Se quer se matar deixa de matar logo. Para ele vai ficar pior depois. Vira uma vergonha”. Olhou para mim esperando confirmação. Eu fingi que o sol havia me cegado. Ele continuou: “A polícia tá fazendo um favor só pra família. Porque para ele é pior não pular. Não é?”

Como ele esperava alguma resposta minha, disse apenas: “O senhor disse tudo” e fui embora.

Logo, pessoas que estavam presas em alguns ônibus no alto da ponte sob sol forte há quase quatro horas começaram a descer pelo asfalto à pé. Vi o sofrimento de uma senhora de idade cuja pele estava cheia de brotoejas. “Não tem previsão para acabar, não. Chega carro de socorro, vai embora. Desistimos.” Perguntei se ela presenciou agressões verbais ao homem no parapeito. Ela abaixou a cabeça com desgosto e foi embora sem responder.

O estado de espírito do brasileiro foi traduzido por um senhor de uns 70 anos, cara de empresário. Colou em mim e disse, com aquela expressão de quem está por fora mas finge estar sabendo de alguma coisa: “Será que isso não é coisa política, não? Fizeram isso tudo aí para criar uma confusão se se aproveitar?”

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Para chegar ali, pedalei por uma fila de alguns quilômetros de carros. Muitas buzinas, gente gritando que há quatro pistas na ponte, que o drama se desenrolasse no cantinho para que todos pudessem seguir.

Um fiscal do pedágio que estava por ali esperando o desfecho me disse que “há alguns anos, começaram a parar todo o trânsito porque ônibus e carros ficavam buzinando e gritando para a pessoa se jogar de uma vez”. Informação esta que foi confirmada por uma amiga psicóloga ligada ao serviço público.

Segundo dados da concessionária responsável pela ponte, o número de tentativas de suicídio vem aumentando – as fatais também. Em 2000, houve oito tentativas, duas fatais. Em 2005, 12 tentativas, duas fatais. Em 2011, 21 tentativas, oito fatais. Em 2016, como disse acima, 46 tentativas e 10 fatais.

No caso do ano passado, a coordenadora do Grupo de Trabalho de Prevenção do Suicídio no Espírito Santo, Daniela Reis, cobrou atitudes do poder público para tratar da evidente crise de saúde mental por que passamos.

“A gente precisa investir em treinamento para os profissionais, para os professores de educação básica. Não é só prevenção de suicídio, mas promoção de saúde mental. A população está mais adoecida. O índice de violência, de trauma de preconceito, isso também adoece.”, disse ela.

Um projeto para instalar um guarda-corpos (a palavra é mesmo esta) de vidro de 2,10 m em toda a extensão da ponte ainda não foi colocado em prática. Ele foi autorizado pela Agencia de Regulação dos Serviços Públicos e custará 16 milhões de reais. Não se tem notícia de que a instalação ocorrerá em breve, apesar do prazo de apresentação ter vencido no dia 12 de outubro.

De acordo com a OMS, 90% dos casos de suicídio podem ser prevenidos – isso porque 9 entre 10 pessoas que sobrevivem a uma tentativa jamais tentam de novo.

Quando finalmente um agente da guarda municipal apareceu de moto para liberar o trânsito e avisar que o resgate havia tido sucesso, houve muita comemoração. Por causa do trânsito, claro. Mas não era só isso. Aquele sentimento vago de que ele deveria sofrer alguma punição caso sobrevivesse se dissipou.

Um rapaz com camiseta de escola de jiu jitsu que estava irritado porque perdeu a hora do almoço (dieta da proteína é coisa séria) disse para mim antes de acelerar o carro.

“Foi bom assim.” E fez uma pausa. “Né?”

Ambulância que recolheu o homem que tentou se jogar da ponte (Foto: Marcelo Zorzanelli)

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Resolvi adicionar um diálogo que pesquei no Twitter (hoje, “Terceira Ponte” ficou no topo dos assuntos mais comentados).

Um rapaz disse algo assim (não reproduzo ipsis litteris para preservar suas identidades):

“Por que vão querer se matar na ponte? Por que não amarram uma corda no pescoço em casa?”

Um amigo respondeu dizendo que acha que “tentar uma forma de suicídio que possa ser impedida é uma forma de acreditar que talvez algo diferente possa acontecer””

O primeiro retrucou: “Então a pessoa vai ser marcada como alguém que quer ‘chamar atenção’. Tem outras formas de fazer”

O segundo então disse que passou anos achando que a depressão de alguém muito próximo era para “chamar a atenção” e que se arrependia muito por isso.

O primeiro então teve um momento de luz: “A culpa então é de quem não vê que o outro está doente.”

O segundo emendou: “Mas a pessoa não fala porque não quer que as pessoas a vejam de forma diferente.”

O primeiro terminou “Claro que não.”

Pessoas aguardam liberação da ponte na pista. (Foto: Marcelo Zorzanelli)

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