A morte de Anthony Bourdain revela a força do estigma sobre a depressão
Depressão não é uma escolha. Não importa o tamanho do seu sucesso. É uma doença mortal que não vai embora quando o sujeito tem grandes realizações na vida, como esta semana deixou dolorosamente claro. Em poucos dias, duas figuras públicas extremamente queridas tiraram as próprias vidas.
Que dor levou a estilista Kate Spade e o chef Anthony Bourdain a tomarem a decisão, ninguém saberá.
O importante é que já foi, já era. O que quer que pudesse ter sido feito, por eles não poderá mais ser.
Mas neste momento sinistro, abre-se uma janela. A perplexidade de uma tragédia como esta é a hora para que nós, como sociedade, pensemos se é o bastante o que está sendo feito por quem sofre com problemas de saúde mental.
Repito: a depressão não brinca nem quer saber se o doente teve sucesso em conseguir a “vida que queria”. Quem tem uma pessoa querida com a doença ou a suspeita dela, faça o favor de se informar mais, buscar ajuda profissional e não deixar que ela interrompa os tratamentos.
“Ele viveu tanto que a ideia de morte me parece ridícula”, escreveu hoje um articulista da revista GQ sobre Bourdain. “Curioso, honesto, cheio de compaixão, brigão, tarado”, foram os adjetivos que ele usou para defini-lo.
Além de ter programas de TV de culinária em que viajava o mundo (veio comer feijoada na casa de uma senhora numa favela do Rio), ele era um ativista que denunciava as condicões de trabalho na indústria da alimentação, direitos de imigrantes e direitos humanos em geral.
Bourdain também era um dependente químico e sofria de depressão. As duas coisas estão muito ligadas. E as duas são igualmente varridas para debaixo do tapete na nossa sociedade.
Ele nunca fez segredo: usou heroína, cocaína, quaaludes (um sedativo poderoso), barbitúricos, cogumelos, maconha, álcool – o cardápio ilícito era vasto como o consumido na frente das câmeras. Não havia nada que o homem não provasse.
“Fui um dos sortudos”, ele disse em 2016. “Há um monte de caras que não chegaram tão longe. Eu devia ter morrido na casa dos 20.” O problema do abuso de substâncias em cozinhas de restaurantes caros não é novidade. O ambiente é tenso e droga é muleta. Muitos têm sua depressão agravada. Em 2003, o chef Bernard Loiseau se matou com uma espingarda porque um jornal sugeriu que ele perderia uma estrela no Guia Michelin.
A morte de Bourdain me fez lembrar a do ator Philip Seymour Hoffman. Aos 46 anos, depois de ficar sóbrio por 23, Hoffman voltou a usar heroína e durou poucos dias. Se isolou em seu apartamento em Manhattan. A polícia achou dezenas de pacotes de heroína minuciosamente arrumados sobre um móvel.
Recaídas são normais e fazem parte do processo. O que mata é a vergonha, a culpa, a sensação de que você se tornou um pária no espaço de um minuto. Vai voltar para uma clínica, ser marcado com ferro e fogo novamente pela sociedade. Perder tudo.
O que mata não é a droga. O que mata é a doença mental que cria as condições para o abuso. A dependência química muitas vezes é apenas uma forma de automedicação. O que ajuda a matar é o estigma. Escrevi sobre isso aqui.
Hoje mesmo fui comprar um remédio de que faço uso, de receita azul. Ansiolítico, tarja preta. Ao meu lado no balcão, mais três pessoas. Uma mulher de meia idade, um senhor mais velho e uma moça de 30 e poucos. Como sempre, dobrei a receita azul até caber na palma da mão e ia escorregá-la pelo balcão para o farmacêutico de forma que ninguém a visse.
E então me lembrei do Bourdain. Pela primeira vez que me lembre, abri a receita azul bem aberta, plantei no meio do balcão à vista de todos, apontei com o dedo e falei em voz alta: “Eu preciso disso daqui, amigo”.
Não tenha vergonha de contar sua história. Se está se sentindo mal, comece agora. Ligue para uma pessoa querida. Se precisar, ligue para o Centro de Valorização da Vida: o número é 188.
***
Ouvir as histórias de vocês me ajuda a escolher os temas a tratar e me ensina bastante sobre as nuances dos transtornos mentais. Não hesite em escrever. Meu e-mail é marcelinho@gmail.com